segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Por trás das vassouras


O trabalho dos garis noturnos, que passam por situações inusitadas para manter a cidade limpa


Assim que o comércio fecha, começa mais uma noite de trabalho dos garis Cícero da Silva, 27 anos, Manuel Aranda,43, e João Fernandes,50. Eles partem da rua do Mercadão Municipal por volta das seis da tarde e seguem até a avenida Mato Grosso, onde chegam às duas horas da manhã, depois de aproximadamente 30km de ruas varridas. A equipe vai sempre uniformizada com roupa laranja de tarjas luminosas, carrinhos de lixo, vassouras, luvas e bonés.
Mesmo com um árduo trabalho pela frente, não se negam a conversar durante um bom tempo sobre suas vidas, suas famílias, preconceitos enfrentados e desejos alimentados.
Cícero, o mais novo, é também o mais extrovertido e falante: "Vim me aventurar em Campo Grande e trabalho como gari para sobreviver. É uma profissão como qualquer outra, mas se a gente for ligar para todas as coisas que dizem, não trabalhamos em lugar nenhum."
O trio forma uma equipe bem unida. João e Manuel trabalham juntos há quatro anos.Cícero passou a ser integrante da equipe há dois meses, mas já explica com desenvoltura como é a rotina de um varredor. Conta, por exemplo, que mesmo sendo varredores e não coletores, volta e meia encontram coisas reaproveitáveis pelas ruas do centro: “Já encontramos rádio velho e até ventilador, que o Manuel levou para casa e usa até hoje. Mas o mais comum que a gente encontra são animais mortos”
Como o trabalho do trio é todo no centro da cidade, o maior volume de lixo, segundo eles, é de papéis de propaganda que são jogados na rua todo dia. A parte mais dura do trabalho é na rua 14 de Julho entre a Afonso Pena e a Cândido Mariano. E a única pausa para descanso é por volta das nove e meia da noite, quando os três se juntam a outros varredores para jantar na Afonso Pena em frente à praça Ary Coelho.
Cícero, sotaque pernambucano, conta tudo isso com um sorriso cansado e olhos tristes. Com ar de inconformismo, ele deixa clara a insatisfação com o salário: “A gente trabalha muito e ganha muito pouco, mais ou menos 19 reais por dia.”
Os varredores trabalham cerca de nove horas diárias de segunda a sábado, são registrados e têm direitos assegurados, como aposentadoria, décimo terceiro salário e férias. Mas não têm plano de saúde.
Assim como Cícero, João e Manuel também vieram de outras cidades e como garis sustentam suas famílias. A falta de escolaridade os envergonha. Cícero parou no primeiro ano do ensino médio, João Fernandes na quinta série e Manuel, na sexta.
No sábado frio em que os encontramos a equipe trabalhava sem casaco. Dois deles estavam usando roupas laranjas com tarjas luminosas e o outro estava só de camiseta, sem uniforme adequado.
O tempo fechado não os incomoda, pelo contrário: a chuva faz com que as ruas fiquem um pouco mais limpas antes de começar o trabalho. “São Pedro nos ajudou e hoje diminuiu o trabalho da gente, porque a chuva arrasta o lixo para os bueiros.”
Porém, o lixo acumulado nos bueiros provoca enchentes nos dias em que chove mais. “Se as pessoas fossem mais educadas e jogassem lixo na lixeira talvez essas enchentes diminuíssem”, diz Cícero.
Entretanto, algumas pessoas costumam dizer-lhes que se não jogassem lixo nas ruas, os garis não teriam uma profissão e não existiriam.
“Nós não podemos fazer tudo sozinhos. E quando não estamos limpando? A cidade vai ficar suja? Se não colaborarem é isso que vai acontecer”, estima Cícero.
Algumas reações dos varredores mostram a insatisfação com a falta de educação e o preconceito enfrentado por eles nas ruas. Histórias contadas por Manuel são de impressionar. Certo dia, ele estava com mais cinco colegas de trabalho na rua 14 de Julho, no centro da cidade, limpando a sujeira de um dia inteiro, quando um “filhinho de papai”encostou o carro e deu uma cintada nas costas do seu amigo, arrancou com o carro e foi embora. Situações humilhantes como essa não são mais novidade, segundo Manuel.
“Somos chamados de fedidos, quase sempre algumas pessoas passam pela gente e tampam o nariz. As pessoas passam e gritam:oh seus cheirosos! E ainda tem gente que atravessa a rua para não passar do nosso lado”, lamenta Cícero.
Apesar disso, com muito bom humor o trio conta várias situações consideradas por eles engraçadas, como a vez em que Cícero foi “cantado” por um travesti. “Ele me disse: Nossa, que gari lindo! Eu só agradeci e fui embora. Essa não é a minha praia mesmo”. Os coletores confirmaram, rindo, que Cícero é o campeão de cantadas, por ser o mais bonito deles.
O grupo também conta como é a relação com os moradores de rua.
“Eles conversam com a gente, tratam a gente bem e vão embora. Nós vemos pessoas se drogando, eles ficam na deles e a gente na nossa”.
Depois de quase meia hora de conversa, João e Manuel estavam mais descontraídos, falando mais, e Cícero a essa hora já estava até fazendo poses para as fotos. Mesmo com a vida difícil, o grupo parece estar sempre animado e sorridente. Quando nos despedimos eles variam a rua 15 de Novembro perto da Igreja Santo Antônio. Mais uma intensa noite de trabalho estava começando.